“A mina ia ser aqui”, diz Sirlei de Souza batendo o pé no chão de terra em frente a sua casa, numa comunidade rural de Charqueadas, interior do Rio Grande do Sul. “Seria tudo isso aqui”, completa, estendendo as mãos em todas as direções, indicando uma área que segue até depois de se perder a terra de vista no horizonte. Debaixo da imensidão de um terreno plano com 4,5 mil hectares, coberto por poucas casas, plantação de arroz orgânico e algum vestígio de vegetação típica da Mata Atlântica, tem carvão que não será minerado.

Sirlei de Souza. Crédito da foto: Ramiro Furquim

A vitória contra a Mina Guaíba, megaempreendimento que a mineradora Copelmi queria instalar entre as cidades de Charqueadas e Eldorado do Sul, no estado mais ao Sul do Brasil, é uma construção coletiva. “O grande fator foi cada grupo se mostrando; se fosse só um, ia ser ‘só os índios’ ou ‘só os pescadores’”, avalia Gilmar da Silva Coelho, presidente da Colônia de Pescadores Z-5, com sede na Ilha da Pintada, parte do território da capital Porto Alegre. Ele complementa que cada um dos grupos “já é muita coisa”, mas sabe que o reconhecimento teve impacto mesmo no conjunto.

Para tentar tirar do papel o projeto da maior mina de carvão a céu aberto da América Latina, a empresa apostou no discurso desenvolvimentista da criação de empregos e do aumento na arrecadação de tributos pelos dois municípios e pelo Estado. Conquistou assim políticos de diferentes gestões e ideologias, mas não teve o mesmo êxito em convencer a sociedade. Recentemente, a Copelmi sofreu reveses na Justiça em ações movidas por ONGs em respaldo às demandas de comunidades locais que seriam afetadas com a instalação da mineradora. Passados mais de sete anos desde a primeira notícia sobre a Mina Guaíba, a mobilização culminou no arquivamento do processo de licenciamento pelo órgão ambiental do Estado, em março de 2022.

 

Falta de informação e consulta serviu de base para questionamento na Justiça

“A primeira coisa que eu falei foi: vou até analisar, mas isso aqui eu sou contra”, relata Gilmar da Silva Coelho ao lembrar de quando soube do empreendimento – por acaso, já que a comunidade não foi procurada pela empresa na etapa de elaborar os estudos sobre a mina. De cara não gostou da proposta, por ser evidente que o impacto chegaria ao seu quintal – a Ilha da Pintada é um dos pontos por onde o Rio Jacuí deságua no Lago Guaíba. O mesmo Rio Jacuí, alguns quilômetros acima no seu curso, receberia os efluentes tratados da mina. O receio era que isso afetasse a água, assim como a extração e queima de carvão poluiria o ar.

 

Mas faltavam informações. A Copelmi realizou audiências públicas em Charqueadas e em Eldorado, restrita às obrigações às quais entendia estar sujeita. Deixou de fora Porto Alegre e uma série de cidades no entorno. “A gente não sabia de nada, não fomos ouvidos, não tivemos voz”, conta Gilmar, que esteve presente em uma das audiências. A intenção era entender o que estava acontecendo para relatar aos demais pescadores – mais de 1,5 mil integram a colônia e a maior parte destes pesca no Jacuí – mas ele percebeu que aquele momento foi criado apenas “para validar” o processo.

A estratégia adotada foi ingressar com uma ação na justiça, inclusive solicitando que a comunidade fosse ouvida no seu local de origem. O mesmo caminho foi adotado pelo povo Mbya Guarani, pois a Copelmi tampouco realizou consultas prévias às comunidades indígenas que seriam afetadas diretamente ou indiretamente pela mineração de carvão. Esta ação rendeu uma das vitórias contra a Mina Guaíba na Justiça.

Cacique Santiago. Crédito da foto: Ramiro Furquim

“Nunca foi informado para a gente, eu não sabia o que estava acontecendo”, confirma Cacique Santiago, da Aldeia Yvy Poty, povo Mbyá Guarani. A morada da sua família fica numa área cercada por mata e protegida pelo governo federal e pela Funai, conforme indicam as placas no acesso pela estrada que corta o município de Barra do Ribeiro. Hoje 63 pessoas moram em três pontos diferentes da mata que abriga o seu povo desde sempre, conta o líder. Lá se planta milho e banana, se cria galinhas e peixes em um açude, tudo para consumo próprio. Alguns pés de laranja recém plantados estão da altura das crianças que correm com os cachorros pela aldeia.

Cacique Santiago recorre à sabedoria dos povos tradicionais para afirmar o que a Ciência e o Direito já reconhecem: a natureza não tem fronteira. “A cultura indígena tem a vida, e a proteção da vida é sempre no mato, no ambiente, no rio. Muito tempo já vem essa destruição da água, atacando a nossa vida. Mesmo que a gente não está perto na cidade, mas futuramente se contamina todo mundo. Essa é a vida que o juruá (não indígena) não enxerga, a empresa não enxerga essa coisa. Parece que quem vive e está perto é que vai ser contaminado, mas não é assim que a gente vê. Futuramente o vento leva por um milhão de quilômetros, não leva 20 quilômetros. Para ele (o vento) não tem limite.”

E o vento sopra em todos os sentidos no quase descampado onde a mina seria instalada, conta Sirlei gesticulando também em todos os sentidos, enquanto seu cabelo era com frequência desalinhado pelo vento sul que soprava forte numa manhã nublada de outono no loteamento Guaiba City, em Charqueadas, onde mora. Fosse no sentido leste, o vento e tudo o que ele carrega estariam indo em direção à região metropolitana de Porto Alegre, apelo usado em muitos momentos para sensibilizar mais pessoas e entidades a se posicionarem contrárias à mineração de carvão. 

“Não seriam só Guaíba City e o assentamento (Apolônio de Carvalho, do MST) que seriam impactados. O pessoal todo em volta estaria à mercê daquela chuvinha ácida que ninguém enxerga, (que provoca) o câncer e tudo que é tipo de doença”, aponta Sirlei. Os cerca de 20 quilômetros lembrados pelo Cacique Santiago separam o lugar onde o megaempreendimento ficaria e o centro da Capital. Sem dúvida muita gente iria sofrer as consequências da maior mineração de carvão a céu aberto da América Latina. Mas é o reconhecimento dos direitos das comunidades locais que garantiu a vitória de toda a sociedade contra a Mina Guaíba.

 

Mudança de percepção sobre a mina

Sirlei de Souza trabalhou como agente de saúde atendendo o loteamento Guaiba City, zona rural de Charqueadas, lugar que escolheu para ser sua casa há 25 anos. Hoje cria porcos, vacas e outros animais, tem uma horta, pomares e um pequeno comércio para atender a vizinhança. Foi favorável à construção da mina no início e cogitou vender sua propriedade para a Copelmi e ir embora, “até pelo descaso das prefeituras”. Os moradores do loteamento Guaiba City e do assentamento do MST Apolônio de Carvalho, que precisariam ser removidos para a instalação da mina, foram procurados pela empresa.

Mas a percepção mudou à medida que começaram a entender o que é uma mineradora. “Iam estar minerando com nós aqui dentro. Já pensou o inferno que ia ser nossa vida?”, desabafa. A ideia da empresa, conforme a informação repassada a Sirlei e ao restante da comunidade, era iniciar os trabalhos tão logo possível, sem esperar todo o complexo ficar pronto. “Além de estar respirando ar totalmente poluído, não ia dormir, ia ver as casas tremendo, parede rachando, piso afundando. Iam nos tirar no desespero”, avalia.

A percepção de Sirlei também mudou quando ela começou a problematizar o discurso da empresa, como o da indenização a ser paga pelo terreno e dos empregos que seriam gerados. “Como tem muito desemprego, as pessoas ficam realizadas. Só que a Copelmi tem a equipe que vem de outras minas. Única coisa que daria emprego seria a obra, que é muito rápida”, pondera.

Cristiane Pissoni, vizinha que foi comprar milho para as galinhas na venda de Sirlei naquela manhã de outono, contou sobre a granja de orgânicos que está montando ali perto: “tem muita coisa que a gente pode fazer aqui para gerar emprego, não precisa vir uma mineradora de fora explorar nosso solo e não dar emprego para ninguém (daqui)”.

 

Estado de alerta é constante

“A questão da mina ‘explodiu’ no momento que começaram várias frentes trabalhar”, diz Gilmar da Silva Coelho, presidente da Colônia de Pescadores Z-5, em alusão à atenção que a imprensa passou a dar à Mina Guaíba quando as manifestações ganharam força no continente – é como os moradores do bairro Arquipélago, onde fica a Ilha da Pintada, se referem ao restante de Porto Alegre. A mobilização cresceu, ganhou mais adeptos e passou a constranger os políticos que antes “eram contra nós e a favor da Copelmi”, aponta Sirlei de Souza. “Começando pelo nosso governador, que primeiro era favorável. O anterior também, deixou a cama pronta para esse deitar. A real é essa”, completa.

Gilmar da Silva Coelho. Crédito da foto: Ramiro Furquim

Por mais de meia década, desde quando se começou a falar sobre Polo Carboquímico, Polo Carbonífero e Mina Guaíba, a vida de quem seria removido “parou no tempo e no espaço”, conta Sirlei. Quem queria reformar a casa ou investir na sua propriedade, com alguma nova plantação, por exemplo, não o fez. “Estamos realizados (com o arquivamento do licenciamento). Agora pode construir se quiser, pode plantar se quiser, pode fazer tudo o que quiser porque está sabendo que não vai sair”, comemora.

Os planos estão de volta à mesa, mas um pé está bem firme no chão, e o outro, atrás. “Eu ainda não acredito 100% que eles não estejam articulando alguma coisa por trás”, responde Sirlei ao questionamento sobre a tranquilidade que sente. “A gente tem alívio que agora não vem. Mas a minha pergunta é: ‘E futuramente? Quando essas cabeças não estiverem aqui e estiverem nossos filhos e nossos netos, será que não vem?’”.

Gilmar da Silva Coelho se desculpa pela expressão, que julga necessária para impactar: no caso da Mina Guaíba, é preciso matar o mal pela raiz. Compara com o inço “que tem que eliminar antes de tomar conta da plantação toda”. O megaempreendimento de minerar carvão não foi eliminado, mas Gilmar acredita que a mobilização social e as ações na Justiça “conseguiram controlar que não crescesse muito”. Mas há que estar atento e seguir a vigilância”, alerta.

Na comunidade do Cacique Santiago e nas demais aldeias Mbya Guarani do Estado, a espiritualidade foi aliada na mobilização contra a Mina Guaíba. “O contato com a natureza ajudou para não acontecer isso”, conta, reconhecendo também o papel das ONGs e das comunidades tradicionais de povos juruás. “Vamos estar sempre de pé, sempre lutar para que o governo respeite o nosso direito”.

As perspectivas particulares de cada uma dessas comunidades se une em torno de uma preocupação maior, que dialoga com a pauta climática em nível global.  “A mina é extremamente poluente e, no momento que polui, também está contribuindo com o aquecimento global”, sustenta o pescador. “Seria um retrocesso voltar para uma coisa que não é ambientalmente viável. Hoje o mundo inteiro está abandonando o carvão e o Rio Grande do Sul retrocedendo, o Brasil. É um descaso como o nosso Estado e país”, critica.

“Uma coisa boa que aconteceu é a iniciativa de todas as comunidades de lutar contra um empreendimento nocivo para o nosso ecossistema. Nesse momento (o processo está) teoricamente encerrado, mas no futuro pode ser que não esteja. Temos que estar muito atentos e não deixar acontecer. O objetivo é tentar preservar ao máximo possível nosso planeta para que nós mesmos consigamos sobreviver nos próximos anos”, conclui Gilmar.